sábado, 3 de setembro de 2005

Um dia (a)normal


... e ele entra cambaleando pelo grande salão branco. Sua visão está afetada, não enxerga direito. Entra tropeçando em cadeiras, crianças, bolsas, idosos. Depois de um grande esforço consegue chegar até o balcão, entrando na frente de várias outras pessoas, o que provoca uma grande murmurinho e uma certa indignação. Força a vista para conseguir enxergar a senhora que tranquilamente lê uma revista de fofocas, atrás do tal balcão. O lugar é um hospital, a senhora é a recepcionista e ele é um homem que acabara de levar um tiro.
- Em que posso ser útil? - diz a mulher.
- Minha senhora... acabo de tomar um tiro!
- Muito bem. Por favor, apresente seu CPF e seu RG.
- O que?! Eu não estou com nada disso, acabo de ser assaltado! E ainda por cima levei um tiro! Por favor, me ajude!
- Bem, nesse caso, você vai precisar esperar.
- Mas eu não posso! Se não for atendido logo, vou morrer! Me ajuda!
- Calma, todos os que estão aqui, inclusive aqueles em que você tropeçou ao entrar, também precisam de ajuda. Aguarde.
Atônito, o homem aguarda a recepcionista fazer uma ligação para a direção do hospital. Enquanto isso, ele olha a sua volta, e o que vê não o agrada em nada: crianças tossindo sem parar, velhos ora deitados no chão, ora em macas espalhadas desordenadamente, quase implorando por ajuda. Mulheres desesperadas pela falta de atendimento, e ambulâncias chegando trazendo as vitimas de um acidente, ou de um incidente, ou de uma vida em cidades onde ninguém mais se sente seguro, como ele. Nota que toda aquela gente destoa do branco vivo do salão. Mesmo com a dor que sentia, ainda conseguiu ter um pouco de indignação com tudo aquilo. Logo, a mulher volta a ele:
- Olha, a gente não pode atender quando não se traz documento. Mas vamos quebrar o seu galho. Você pelo menos trouxe a sua carteira de trabalho?
- Já disse! Não tenho documentos! E por que eu andaria com minha carteira de trabalho no bolso, minha senhora?!
A fila começa a ficar irritada com a demora. Gritam por mais agilidade para atender o tal homem. Uma enfermeira aparece e acalma a todos. Continuam os dois:
- Tudo bem. Você vai ser atendido assim mesmo. Mas não se esqueça: assim que terminar lá dentro, traga o seu CPF, seu RG, sua carteira de trabalho, sua certidão de nascimento, um comprovante de residência, comprovante de renda, CNH e se quiser, cinco reais para contribuir com a melhora do atendimento.
- Okay, mas anda logo, me deixa entrar!
O sangue que saia de seu ferimento já havia encharcado sua roupa, e sua visão ficava cada vez mais turva. Ele mal conseguia enxergar quando ela disse:
- Pegue sua senha e aguarde.
- ?!?!?!
- Meu amigo, todos aqui querem atendimento. Tá pensando o que? Isso aqui é hospital público, meu chapa! Não tem privilégio não! Agora, pegue a droga da sua senha, sente-se em algum canto e aguarde!
- Mas...
- Próximo!

4 comentários:

Tom disse...

Deus, que horrível!!!
E pensar que é assim, mesmo...
Alve naria!...

Anônimo disse...

Luiz, de fato, na vida real, muita gente morre nas filas, a espera de atendimento..este descaso, revoltante, pode ser presenciado em varios hospitais publicos, não faltam reportagens a respeito..mas descaso é descaso, por isso nada é feito.. Meus parabéns a vc e aos outros escrevinhadores!! Bjos!

Anônimo disse...

Parabens pela narração. Infelizmente esse é um fato que acontece todos os dias, a toda hora e em todo o país. E o pior é que não se vê luz no fim do túnel. Muitos ainda morrerão na fila de hospitais e postos de saúde em busca de atendimento. Enquanto isso... o dinheiro desviado viaja em malas. Que Deus tenha pena de nós.

Anônimo disse...

Bom, se ele tivesse grana tlavez estivesse num carro blindado. Ou se fosse um hospital particular, ele primeiro seria atendido ou não. Vale repensar valores. Dinheiro, nome não significam mais prestígio. Pode ser roubado. Hj em dia todos são "honestos" demais para manter um hospital como fachada! É, infelizmente acho q a situação atual do país realmente me pôs na berlinda!