sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

Refugiados etíopes. Etiópia, 1985 – Foto: Sebastião Salgado

Obtuário

Esses rostos, que gritam sem mover a boca, já não são rostos de outros. Esses rostos deixaram de ser convenientemente distantes e etéreos, pretextos ingênuos para a caridade de consciências pesadas.
Eduardo Galeano


Judeus na Palestina, xiitas e sunitas, homens-bomba e homens-bíblia, sérvios e croatas, brasileiros e argentinos, corintianos e palmeirenses e são-paulinos e santistas, manos e boys,
paquistaneses na Índia, índios do baixo-Xingu, índios e madeireiros, índios americanos e a cavalaria, cleros e burgueses, tibetanos e chineses e japoneses, japoneses em Hong Kong, cearenses e paulistas no Rio de Janeiro, gaúchos em qualquer lugar, cubanos em Miami, novaiorquinos em Londres, brasileiros na Suíça, irlandeses e ingleses, coreanos do norte e do sul, iranianos e iraquianos e israelenses, libaneses e americanos e iranianos, espanhóis e astecas e maias, franceses e africanos, albaneses e argelinos, castristas e americanos e russos, homossexuais no Brooklin, negros na europa, punks e hippies e carecas e metaleiros, católicos e protestantes e evangélicos, alemães e nazistas e os judeus alemães, realeza e proletariado, camelôs e fiscais, policias traficantes, padres homosexuais e liberais, negros e Ku-klux-kan, meninos de rua, catadores de papel, negros pobres, negros ricos, ex-detentos, pecadores e apóstolos, americanos e vietnamitas, russos e afegãos, sírios e americanos e terroristas muçulmanos, ingleses na Índia, argentinos e ingleses, brasileiros e paraguaios, latifundiários e sem-terras, capangas, calangos, nordestinos em São Paulo, etíopes e sudaneses, luteranos e cristãos, muçulmanos e americanos. Fome, fé, ideologia, sotaque, nacionalidade, ignorância, ambição. De uma forma ou de outra, isso mata.



wallace puosso
http://celebreiros.zip.net

sábado, 18 de fevereiro de 2006


foto: http://img.photobucket.com/albums/v216/scarredqueen/interracial.jpg
"O teu cabelo não nega mulata porque és mulata da cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o teu amor..."
(Lamartine Babo e Irmãos Valença)

Ó, tá vendo aquele cara, ali? Eu que não queria ser que nem ele...

Ópraquilo! Um cara magrela daquele jeito, alto que só... poderia dar uma lapa dum hôme... mas não! Não pega uma praia, cheio de piercings, tatuagens, roupas escuras e trejeitos estranhos... uma bichona! Deus me livre de ter até um parente que nem ele!

Ó, tá vendo aquela outra, ali? A maior puta da cidade! Nem se engane pelas roupas bonitinhas, pelo porte de menina decente, ou pelas bijuterias com cara de jóias caras! Todo mundo na vizinhança sabe do que ela gosta quando os pais não estão em casa... Deus me livre de ter uma filha assim! Eu bateria até ela desaprender a sentar!

Ó praquele pretão, lá! Tão preto, mas tão preto, que não deve correr nem risco de ser assaltado, à noite! Basta ele andar em qualquer rua com o poste sem iluminação... e isso não falta por aqui, não é? Fora que é feio pra danar... como uma criatura com um nariz desse tamanho e esse cabelo que nada penteia pode ter coragem de sair na rua? É muita falta de espelho em casa... se é que tem casa, né? Aposto como mora de favor na casa do patrão!

E aquele ali? POLÍTICO! LADRÃO! CORRUPTO! FELADUMAPUTA! Preciso dizer mais alguma coisa?

Essa gentinha toda aqui... num lugar do povo, de gente do bem, que nem eu e você... como pode? Eles deveriam ser todos presos!

Como é? Você não concorda? Preconceituoso, eu? Eu sabia que você só podia ser igual a eles!

É assim, mesmo! No final das contas, só quem merece ir para o céu sou EU!...



Tom desejando um ótimo carnaval para todos! Muita paz, amor e CAMISINHA!!!

sábado, 11 de fevereiro de 2006

Pre /Conceito
ou
Como se tornar inimigo da sociedade em alguns passos



para Caio, Marina, Danilo, William e Sweet,
que me ajudaram a sair do bloqueio e conseguir voltar a escrever.


Preconceito: S. m. 1. Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida. 2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo. 3. P. ext. Supertição, crendice; prejuízo. 4. P. ext. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etc.

Dicionário Aurélio


Jovens são mesmo jovens e ponto final. É absurdamente normal que na adolescência os mais novos tenham vontades diferentes, por aderirem a moda vigente ou por ter um estilo diferenciado. Por exemplo, aqui do meu lado, de olho no que eu tô escrevendo, tem um moleque, de uns quinze anos, vestido inteirinho de preto, com cabelo estranho, colorido. É a moda atual. Todos, de uma maneira ou de outra, acabam por entrar na onda. Eu já passei por isso. Você, que lê esse texto agora, provavelmente também passou. Ou está passando. Sei lá.

Mas isso causa certo desconforto na sociedade, muita senhora puritana acaba torcendo o nariz e olhando torto para quem está de negro num calor de quarenta graus, por exemplo. É a maneira com que as pessoas vêem as outras. Com indiferença, com estranheza; normalmente, quem é roqueiro é visto como maconheiro, quem é junkie fica famoso por ser vândalo (e maconheiro), quem é emo tem fama de homossexual (nunca se esquecendo do maconheiro), quem tem seu próprio estilo é visto como deflagrador de uma moda passageira, que certamente levará o filho mais moço da senhora puritana acima citada a entrar na moda, e com isso também ganhar status de maconheiro. E, quem tiver a resposta por favor me avise: porque a sociedade em geral tem essa visão das pessoas? Como podem julgar alguém sem conhecer?

Isso me lembra um caso. Tudo começa com João, um adolescente de dezesseis anos, que ia a igreja toda semana, rezava, fazia catequese, aluno exemplar, com notas altas e futuro promissor. Orgulho dos pais, motivo de inveja dos primos e amigos. Ele tinha tudo para ser feliz, mas sempre se perguntava " - O que me falta?" Ele sabia que todo mundo olhava para ele como um nerd, cdf, e que com certeza seria médico, advogado ou dentista absolutamente sério.De repente, seus amigos passam a deixar o cabelo crescer, usar camisas pretas, sujas e rasgadas com os logos de bandas de heavy-metal. João pensou: porque não? E passou a ouvir o som de Iron Maiden, Mettalica, AC/DC... entrou de cabeça nisso e pensou que estava agora de bem com a sociedade. (no fundo ele se importava com isso).

Mas, agora todo mundo passou a olhá-lo como um viciado, que ouve bate-estaca para se drogar, aquela música nojenta, horrivel. Mesmo ele ainda sendo o mesmo João das notas altas na escola, da catequese, da missa, do futuro brilhante, parecia que ninguém mais olhava essas qualidades. Na missa ninguém nem sequer o olhava, só porque cantarolava "The Number of The Beast" em rodinhas de amigos. O julgavam por ser metaleiro. Ele passou a ser recusado nas rodas de amigos que curtiam MPB, por exemplo. Ou qualquer outra roda de qualquer outro assunto de qualquer outro estilo. Por que isso?
As pessoas mudaram o modo de vê-lo, e em questão de meses ele passou de boa-praça a boa-merda. E ele percebeu que o preconceito existe, não só entre negros e brancos, o que é mais comum e igualmente condenável. Mas, cada dia que passa, nota-se que até por questões ridículas, o relacionamento humano se quebra. Se alguém tem um penteado diferente, uma roupa diferente, um jeito diferente, esse alguém vai ser recebido com duas dúzias de pedras na mão. E a pessoa em si, já não importa mais. É o que o ensinamento quase medieval que vem sendo pregado a todos desde tempos que ninguém se lembra mais. E ninguém se lembra também do porque desses fundamentos terem surgido. Talvez eles tivessem validade na época de Esaú e Jacó.

Esse caso é apenas um exemplo. E tem outros muitos, que nem caberiam aqui. Questão de cultura, etnia, credo... a maneira com que uma metade da população mundial olha para a outra é de pura demagogia. E, do jeito que a carruagem ta andando, dificilmente isso vai acabar tão cedo. Por isso, se você que está lendo agora for, digamos, "diferente" como o nosso amigo Jõao, apresento duas opções, que a própria sociedade prega mesmo inconscientemente (ou não): ou mate-se ou converta-se.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

.......................................................O SER

............O dia amanheceu brilhante. O sol pulou por trás das montanhas, fazendo marcar 35º C nos termômetros. Acordei transpirando, tanto pelo calor, como pelo pesadelo da madrugada, que havia me deixado abalado, embora não me lembrasse de muita cosa do que havia sonhado. Apenas algumas imagens mal definidas dançavam em minha memória. Com certeza, não deveria ser nada importante para ser lembrado, pois se assim fosse, estaria ainda muito vivo em sua mente. Como dizia um velho conhecido meu: "deve ser mentira".
...........Pensei ainda que este sonhos malucos pudessem ser causados pela excitação de meu programa para o dia que chegava. Afinal iria conhecer o novo espécime adquirido pelo zôo da cidade vizinha. Era o assunto da moda, todo mundo estava se deslocando para lá para conhecer aquele estranho ser vivo, que havia aparecido de repente nas ruas da cidade, parecia que pedia alguma coisa, porém por medida de precaução, o haviam aprisionado e exposto à visitação pública; embora estivessem esperando a chegada de uma equipe de cientistas americanos para aprofundar seus estudos.
............Enquanto isso não acontecia, todos se dirigiam ao zoológico para observar o bicho. Saí de casa, olhei o relógio e percebi que estava totalmente atrasado. O ônibus sairia em 10 minutos, e se não corresse chegaria fatalmente tarde para tomá-lo; corri, quando estava quase chegando à Rodoviária, ele já estava saindo. ..............Gritei com tudo o que meus pulmões conseguiram. Quase desisti porém, uma amiga que estava dentro do ônibus ouviu meu grito e pediu para que o motorista parasse, corri mais uns cem metros, quando consegui alcançar a porta do ônibus, tive que me segurar no corrimão para não cair, fiquei completamente tonto, minha vista escureceu, pensei que fosse ter um desmaio. Por fim, consegui voltar ao normal, sentindo a mão de um passageiro que estava sentado na primeira poltrona e me perguntando se estava me sentindo bem; assentí com a cabeça, pois era o única coisa que eu conseguia fazer, devido ao fôlego que demorava a voltar, obrigando-me a levar a mão ao peito, numa tentativa de aumentar meu poder de sugar oxigênio.
.............Consegui me controlar, não sem antes perceber um olhar de desdém do motorista que engatou a marcha e seguiu em frente, já colocando a mão estendida e gritando o preço da passagem.
............Paguei e segui cambaleando procurando um lugar desocupado. Ao passar pelo passageiro da primeira fila, ouvi que comentava com seu parceiro ao lado que "a juventude não se cuida mesmo, é só noitada, bebida e drogas. Não vão chegar nem na metade da idade que eu já cheguei..." Embora ele continuasse a tagarelar, procurei não mais ouvir o que falava, fui em frente e por sorte havia uma vaga ao lado de minha amiga. Puxei um papo meio sem graça, pois esta era minha especialidade, devido a minha timidez. Falando banalidades, conseguimos chegar em alguma coisa mais interessante e fomos trocando idéias até chegar à cidade vizinha. Foi quando descobri que estávamos indo ao mesmo lugar, ela também não havia resistido à curiosidade de conhecer algo tão estranho. Só achei chato que o assunto se tornou monótono, ficamos falando daquela coisa todo o trajeto, trazendo até mesmo um pouco de ciúme por tanta importância dada a um ser tão insignificante preso em uma jaula.
...............Chegando ao Zôo, paguei os ingressos, pois percebi que minha amiga como sempre estava andando com um mínimo de dinheiro, entramos e nem nos demos ao trabalho de olhar as outras jaulas, já tão conhecidas desde os tempos de criança; fomos direto para ver a novidade. Deu me a impressão de que havia uma estranha luz saindo do centro do fosso onde se encontrava a jaula. Comentei com minha acompanhante, ela observou, riu e disse que eu deveria estar ficando louco. Seguimos em frente, loucos para conseguirmos um lugar onde pudéssemos observar de perto a criatura. Mais uma vez, olhei para cima e tive a mesma sensação de perceber uma estranha luz irradiando do centro daquele fosso, abanei a cabeça, sorri e achei que talvez eu realmente não estivesse muito bom dos pinos. Foi quando percebi o quanto ia ser difícil chegar perto do muro do fosso. Uma multidão se acotovelava para poder colocar o olho no abominável ser. Mas minha curiosidade era tamanha que eu fui me espremendo entre as pessoas e depois de uns vinte minutos percebi que havia chegado onde queria. Vi, porém, que minha amiga havia ficado para trás. Pensei com meus botões que ela saberia se virar, afinal havia deixado pelo menos o dinheiro do ingresso a mais em seu bolso.
............Procurei me concentrar naquilo que havia me levado a estar ali. Uma criatura estava sentada no chão, bem no meio de uma jaula e embora a porta da mesma estivesse aberta, não demonstrava nenhuma vontade de sair; parecia que estava a refletir. Seu olhar melancólico chegava a doer na alma, parecia sentir nas constas, todo o peso do mundo, principalmente por estar ali sendo observado por centenas, talvez, milhares de pessoas e não tinha a menor vontade de encará-los.
............Foi quando entrou o zelador com uma vasilha cheia de frutas, algumas saudáveis outras já em estado de putrefação e colocou-as próximo à porta da jaula. O modo com que andava e olhava para a porta, demonstrava todo o medo que sentia em relação àquele ser. Parecia que isso o dominava, que seria algo que sentiria sempre que entrasse ali. Foi então que percebi como aquele simples ser realmente atraia a atenção. Tinha um certo fascínio que não me deixava tirar os olhos de cada músculo que mexia, cada piscada, cada gesto que dava, embora muito raros. Percebi que algo ali me fascinava. Após perceber isso, não consegui mais desviar os olhos da criatura, parecia hipnotizado, algo naquele ser parecia-me familiar.
............Após, mais ou menos, uma hora que havia chegado ali, percebi um movimento maior do que o normal, o animal levantou-se de onde estava, espreguiçou-se, seguindo em direção à vasilha com frutas. Mexeu, mexeu e escolheu uma maçã verde que parecia bem saudável e a levou à boca. Pude então perceber que haviam muitos traços humanos naquela criatura. Notei que logo após este movimento, a excitação das pessoas em minha volta era bastante grande. Ouvi alguns comentários jocosos sobre o animal. Então um garoto com cara de quem adorava fazer traquinagens, jogou algo que parecia uma bala em direção da jaula, o objeto quicou e bateu contra as grades; o ser levantou seu olhar na direção do garoto, fez um gesto como se estivesse agradecendo e foi em direção à bala. Ao meu lado o garoto fazia um grande esforço para não rir, observando quando desembrulhava e via que somente tinha uma pedra dentro do papel. Foi imediata sua reação, jogou a pedra com força e deu uma olhada fulminante para cima, encontrando com o olhar do garoto que soltava uma gargalhada acompanhado por quase todos em sua volta, sendo que quando percebeu aquele olhar parou de repente, se agarrou à saia de sua mãe que também calou o riso. Preocupada com a reação do garoto, ouvindo um pedido para que saíssem dalí, que queria ir embora para nunca mais voltar àquele lugar. Seu choro era tão desesperado que não houve outra alternativa foi levado dalí, não sem antes olhar para trás e pestanejar: "bicho bobo, não sabe nem brincar."
................As reações após aquele episódio foram das mais diversas; um senhor muito bem trajado, ao lado de seu motorista lamentou a falta de escrúpulos do animal, em "olhar daquela maneira, assustando o pobre garoto. Imaginem se um bicho deste estivesse solto nas ruas, não poderíamos nem mesmo tirar um sarrinho que logo iria querer nos atacar com unhas e dentes, como se fosse um igual a nós. Vamos embora Pedro, esse imbecil nem mesmo imagina o que são regras sociais, não merece ser observado”.
..............A tarde ia passando e cada vez mais o local ia se esvaziando, percebi uma jovem com roupas da moda, se aproximar, já que agora eram poucas as pessoas que ali estavam e comentar com sua amiga: "nossa ainda bem que esta coisa não tem como se aproximar da gente, já pensou, não tem classe, nem mesmo classificação, não tem nome, nem sobrenome, ai que pobreza e olhe aqueles trapos que cobrem o seu corpo, nem mesmo etiqueta pode ter, é um horror... vamo imbora?"
...............Quando olhei para baixo, um olhar de desprezo enchia o rosto da criatura, demonstrando que havia ouvido e entendido cada palavra dita até aquele momento.
..............Resolvi mover um pouco as pernas, pois já fazia praticamente quatro horas que estava plantado ali, naquela mesma posição. Foi quando olhei para o céu e vi que a noite já começava a cair, dei mais uma olhada fixa para dentro da jaula e foi só então que vi uma tabuleta pendurada sobre a porta da jaula. As autoridades locais o haviam apelidado de "Madmem", logo mais abaixo, haviam mais algumas inscrições, que embora quase ilegíveis, consegui, com muito esforço, traduzir algums dos rabiscos "A última espécie que ama, sofre, sor..., e respeita a simplicidade."Quando resolvi realmente ir embora, comecei a recordar algumas passagens de meu pesadelo da noite anterior: eu era um homem dentro de um fosso cercado por uma multidão. Em cima da porta de minha jaula havia uma tabuleta em que estava escrito... Não consegui me lembrar da inscrição, mas parece-me que tinha alguma coisa a ver com uma espécie em extinção...