segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Um enfarto do coração, um daqueles quase fulminantes, que não dão chance nem da pessoa sentir dor. O sujeito cai, no meio-fio, com apenas um grito abafado de dor. Ninguém o ajuda imediatamente. Pudera, não havia ninguém na rua. Ele cai, morto. Seria o fim. Seria mesmo?

Acham o corpo frio e sem vida algumas horas depois. Ao invés de levarem para o caminho antes natural, o IML, o levam para o hospital, aonde antigamente se tratavam somente pessoas vivas. Depois que um cientista (provavelmente europeu) revolucionou alguns aspectos da medicina, os hospitais recebem pessoas vivas e mortas também. E, por mais incrível que isso possa parecer, todas elas saem saudáveis e bem-dispostas do prédio.

O tal homem enfartado é levado para uma sala de operações. Abrem-lhe o peito, implantam em seu coração um chip que dá impulsos elétricos no músculo coronário, e faz com que seu coração volte a bater, quase que magicamente. Alguns dias depois, o homemque deveria estardebaixo de sete palmos de terra sai tranqüilamente porta afora, com a garantia médica de que ao menor sinal de morte eminente, o chip avisará o hospital, que entrará em contato com ele, para impedir o chato inconveniente de morrer novamente no meio da rua. Até onde o homem deve brincar de ser Deus?

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- Preciso comprar um rim, um coração e um pâncreas.
- Mas afinal, pra que você quer um pâncreas?
- O meu está dando sinais de cansaço, acho que tá na hora de trocar.
- Ah, tá. Então tá. Se acha necessário... aliás, nunca achei o pâncreas necessário.
- Você por acaso sabe pra que serve o pâncreas?
- Não faço a menor idéia. Sei que o temos, e sei que o seu está defeituoso.
- Eu também não sei. Sabia, o médico havia me explicado da primeira vez que eu o troquei. Mas, para mim, ele serve só pra doer e dar câncer.
- Realmente... mas você acha que seu coração necessita de troca? Faz quanto tempo que você colocou esse coração artificial que você usa? Uns 60 anos?
- Que é isso, tá me chamando de velho? Faz uns 40 anos, somente. Troquei quando fiz 80.
- Há! Então tá na hora de trocar. E o rim, han? Você lembra da época em quese precisava ficar dependurado numa máquina imensa, do tamanho de uma parede, parafiltrar o sangue,para não morrer?
- Mal me lembro. Mas devemos agradecer a Deus pela tecnologia alcançada.

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Teu cachorro abana o rabo com displicência. Olha para você com aquele olharde cachorro sem dono. Pede comida. Rola, finge de morto. Corre pra lá e pra cá como uma besta desembestada. Isso quando não está lendo jornal, ou conversando sobre política econômica ou a taxa básica de juros com você. O cachorro, feito de aço e microchips por dentro e com uma aparência mais do que normal por fora, conversa com você, passa sua roupa, come com garfo e faca, atende telefone, além de urinar no seu tapete e correr atrás do próprio rabo. Depois que inventaram essa nova tecnologia, nunca mais as coisas foram as mesmas. Tudo mudou. A vida mudou. As pessoas não morrem mais, demoram a envelhecer, e tem cachorros eletrônicos. Ao ver um desses exemplares, um velho senhor saudoso das épocas passadas pensa em como o homem gosta de brincar de deus.

4 comentários:

Anônimo disse...

Do primeiro texto fiquei com raiva. Parece que lutar pela própria saúde é pecado! Não acho que seja "brincar de Deus" (em relação ao primeiro e segundo texto), mas usar as ferramentas que ele nos deu para vivermos melhor. Já o terceiro texto eu achei engraçado, haha.

No último eu fico mais relutante em dizer o que penso, porque a questão já não é uma vida, mas a satisfação de necessidades claramente secundárias do homem, o que eu acho que é uma atitude moderadamente egocêntrica.

Anônimo disse...

Olá,

Mais um belo texto... Espero que os Escrevinhedores continuem colocando deus textos para que a gente possa saborear os vários pratos que nos são servidos por aqui. Um grande abraço e saudações Escrevinhadoras...

Anônimo disse...

huáhuáhuá Gostei muito! Lembrei de quando assisti o ROBOCOP...
Aqueta
aqueta.zip.net

Anônimo disse...

Deus me livre, honestamente, de um dia desses chegar...
Ainda acredito que todos têm a sua hora...