sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

.......................................................O SER

............O dia amanheceu brilhante. O sol pulou por trás das montanhas, fazendo marcar 35º C nos termômetros. Acordei transpirando, tanto pelo calor, como pelo pesadelo da madrugada, que havia me deixado abalado, embora não me lembrasse de muita cosa do que havia sonhado. Apenas algumas imagens mal definidas dançavam em minha memória. Com certeza, não deveria ser nada importante para ser lembrado, pois se assim fosse, estaria ainda muito vivo em sua mente. Como dizia um velho conhecido meu: "deve ser mentira".
...........Pensei ainda que este sonhos malucos pudessem ser causados pela excitação de meu programa para o dia que chegava. Afinal iria conhecer o novo espécime adquirido pelo zôo da cidade vizinha. Era o assunto da moda, todo mundo estava se deslocando para lá para conhecer aquele estranho ser vivo, que havia aparecido de repente nas ruas da cidade, parecia que pedia alguma coisa, porém por medida de precaução, o haviam aprisionado e exposto à visitação pública; embora estivessem esperando a chegada de uma equipe de cientistas americanos para aprofundar seus estudos.
............Enquanto isso não acontecia, todos se dirigiam ao zoológico para observar o bicho. Saí de casa, olhei o relógio e percebi que estava totalmente atrasado. O ônibus sairia em 10 minutos, e se não corresse chegaria fatalmente tarde para tomá-lo; corri, quando estava quase chegando à Rodoviária, ele já estava saindo. ..............Gritei com tudo o que meus pulmões conseguiram. Quase desisti porém, uma amiga que estava dentro do ônibus ouviu meu grito e pediu para que o motorista parasse, corri mais uns cem metros, quando consegui alcançar a porta do ônibus, tive que me segurar no corrimão para não cair, fiquei completamente tonto, minha vista escureceu, pensei que fosse ter um desmaio. Por fim, consegui voltar ao normal, sentindo a mão de um passageiro que estava sentado na primeira poltrona e me perguntando se estava me sentindo bem; assentí com a cabeça, pois era o única coisa que eu conseguia fazer, devido ao fôlego que demorava a voltar, obrigando-me a levar a mão ao peito, numa tentativa de aumentar meu poder de sugar oxigênio.
.............Consegui me controlar, não sem antes perceber um olhar de desdém do motorista que engatou a marcha e seguiu em frente, já colocando a mão estendida e gritando o preço da passagem.
............Paguei e segui cambaleando procurando um lugar desocupado. Ao passar pelo passageiro da primeira fila, ouvi que comentava com seu parceiro ao lado que "a juventude não se cuida mesmo, é só noitada, bebida e drogas. Não vão chegar nem na metade da idade que eu já cheguei..." Embora ele continuasse a tagarelar, procurei não mais ouvir o que falava, fui em frente e por sorte havia uma vaga ao lado de minha amiga. Puxei um papo meio sem graça, pois esta era minha especialidade, devido a minha timidez. Falando banalidades, conseguimos chegar em alguma coisa mais interessante e fomos trocando idéias até chegar à cidade vizinha. Foi quando descobri que estávamos indo ao mesmo lugar, ela também não havia resistido à curiosidade de conhecer algo tão estranho. Só achei chato que o assunto se tornou monótono, ficamos falando daquela coisa todo o trajeto, trazendo até mesmo um pouco de ciúme por tanta importância dada a um ser tão insignificante preso em uma jaula.
...............Chegando ao Zôo, paguei os ingressos, pois percebi que minha amiga como sempre estava andando com um mínimo de dinheiro, entramos e nem nos demos ao trabalho de olhar as outras jaulas, já tão conhecidas desde os tempos de criança; fomos direto para ver a novidade. Deu me a impressão de que havia uma estranha luz saindo do centro do fosso onde se encontrava a jaula. Comentei com minha acompanhante, ela observou, riu e disse que eu deveria estar ficando louco. Seguimos em frente, loucos para conseguirmos um lugar onde pudéssemos observar de perto a criatura. Mais uma vez, olhei para cima e tive a mesma sensação de perceber uma estranha luz irradiando do centro daquele fosso, abanei a cabeça, sorri e achei que talvez eu realmente não estivesse muito bom dos pinos. Foi quando percebi o quanto ia ser difícil chegar perto do muro do fosso. Uma multidão se acotovelava para poder colocar o olho no abominável ser. Mas minha curiosidade era tamanha que eu fui me espremendo entre as pessoas e depois de uns vinte minutos percebi que havia chegado onde queria. Vi, porém, que minha amiga havia ficado para trás. Pensei com meus botões que ela saberia se virar, afinal havia deixado pelo menos o dinheiro do ingresso a mais em seu bolso.
............Procurei me concentrar naquilo que havia me levado a estar ali. Uma criatura estava sentada no chão, bem no meio de uma jaula e embora a porta da mesma estivesse aberta, não demonstrava nenhuma vontade de sair; parecia que estava a refletir. Seu olhar melancólico chegava a doer na alma, parecia sentir nas constas, todo o peso do mundo, principalmente por estar ali sendo observado por centenas, talvez, milhares de pessoas e não tinha a menor vontade de encará-los.
............Foi quando entrou o zelador com uma vasilha cheia de frutas, algumas saudáveis outras já em estado de putrefação e colocou-as próximo à porta da jaula. O modo com que andava e olhava para a porta, demonstrava todo o medo que sentia em relação àquele ser. Parecia que isso o dominava, que seria algo que sentiria sempre que entrasse ali. Foi então que percebi como aquele simples ser realmente atraia a atenção. Tinha um certo fascínio que não me deixava tirar os olhos de cada músculo que mexia, cada piscada, cada gesto que dava, embora muito raros. Percebi que algo ali me fascinava. Após perceber isso, não consegui mais desviar os olhos da criatura, parecia hipnotizado, algo naquele ser parecia-me familiar.
............Após, mais ou menos, uma hora que havia chegado ali, percebi um movimento maior do que o normal, o animal levantou-se de onde estava, espreguiçou-se, seguindo em direção à vasilha com frutas. Mexeu, mexeu e escolheu uma maçã verde que parecia bem saudável e a levou à boca. Pude então perceber que haviam muitos traços humanos naquela criatura. Notei que logo após este movimento, a excitação das pessoas em minha volta era bastante grande. Ouvi alguns comentários jocosos sobre o animal. Então um garoto com cara de quem adorava fazer traquinagens, jogou algo que parecia uma bala em direção da jaula, o objeto quicou e bateu contra as grades; o ser levantou seu olhar na direção do garoto, fez um gesto como se estivesse agradecendo e foi em direção à bala. Ao meu lado o garoto fazia um grande esforço para não rir, observando quando desembrulhava e via que somente tinha uma pedra dentro do papel. Foi imediata sua reação, jogou a pedra com força e deu uma olhada fulminante para cima, encontrando com o olhar do garoto que soltava uma gargalhada acompanhado por quase todos em sua volta, sendo que quando percebeu aquele olhar parou de repente, se agarrou à saia de sua mãe que também calou o riso. Preocupada com a reação do garoto, ouvindo um pedido para que saíssem dalí, que queria ir embora para nunca mais voltar àquele lugar. Seu choro era tão desesperado que não houve outra alternativa foi levado dalí, não sem antes olhar para trás e pestanejar: "bicho bobo, não sabe nem brincar."
................As reações após aquele episódio foram das mais diversas; um senhor muito bem trajado, ao lado de seu motorista lamentou a falta de escrúpulos do animal, em "olhar daquela maneira, assustando o pobre garoto. Imaginem se um bicho deste estivesse solto nas ruas, não poderíamos nem mesmo tirar um sarrinho que logo iria querer nos atacar com unhas e dentes, como se fosse um igual a nós. Vamos embora Pedro, esse imbecil nem mesmo imagina o que são regras sociais, não merece ser observado”.
..............A tarde ia passando e cada vez mais o local ia se esvaziando, percebi uma jovem com roupas da moda, se aproximar, já que agora eram poucas as pessoas que ali estavam e comentar com sua amiga: "nossa ainda bem que esta coisa não tem como se aproximar da gente, já pensou, não tem classe, nem mesmo classificação, não tem nome, nem sobrenome, ai que pobreza e olhe aqueles trapos que cobrem o seu corpo, nem mesmo etiqueta pode ter, é um horror... vamo imbora?"
...............Quando olhei para baixo, um olhar de desprezo enchia o rosto da criatura, demonstrando que havia ouvido e entendido cada palavra dita até aquele momento.
..............Resolvi mover um pouco as pernas, pois já fazia praticamente quatro horas que estava plantado ali, naquela mesma posição. Foi quando olhei para o céu e vi que a noite já começava a cair, dei mais uma olhada fixa para dentro da jaula e foi só então que vi uma tabuleta pendurada sobre a porta da jaula. As autoridades locais o haviam apelidado de "Madmem", logo mais abaixo, haviam mais algumas inscrições, que embora quase ilegíveis, consegui, com muito esforço, traduzir algums dos rabiscos "A última espécie que ama, sofre, sor..., e respeita a simplicidade."Quando resolvi realmente ir embora, comecei a recordar algumas passagens de meu pesadelo da noite anterior: eu era um homem dentro de um fosso cercado por uma multidão. Em cima da porta de minha jaula havia uma tabuleta em que estava escrito... Não consegui me lembrar da inscrição, mas parece-me que tinha alguma coisa a ver com uma espécie em extinção...

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